(gosta da imagem na casa de chão batido e parede de barro, numa mesinha quadrada na sala, o pai sentado ao lado e lendo pra ela os livrinhos que ele levava)
ANA: Agora é a minha vez? Bom, antes de falar das minhas leituras eu tenho que falar um pouco do meu pai, sabe? Porque meu pai é a figura de referência, né que eu tenho é...de leituras. Ele foi um homem que queria muito ter estudado, mas o pai dele, abandonou a mãe dele, ele tava, eles eram de fazenda e ele tava aqui em Goiânia fazendo o primeiro ano do Ensino Médio na época, mas aí como o pai abandonou a mãe, ele teve que voltar pra fazenda e aí ele foi trabalhar sabe aquele sistema a ½? Eles plantavam a roça a ½, com vizinho e tal pra ganhar dinheiro, né e assim, pra sobreviver, na verdade não era nem ganhar dinheiro, era pra ganhar o alimento ali, né, porque pegava a metade... Então eu acho que ele tinha esse sonho e ele transferiu pra gente, eu nasci na roça mesmo, né, nem é fazenda, é roooça, casa de chão batido, né e meu pai trabalhava na fazenda mesmo assim, e quando, antes de fazer seis anos, quatro pra cinco, ele fez um, participava de um clube de livro da cidade mais próxima que era Silvânia que foi a cidade que depois a gente mudou [ele gostava mesmo então]. Era, era uma frustração que ele tinha, né, mas ele tinha que cuidar da mãe, que a minha vó era doente e tal, e ele era o único homem da família, né, meu pai tem quatro irmãs e eu sou a filha mais velha, eu tenho mais dois irmãos. E aí ele participava desse clube do livro, ele pegava o leiteiro, toda semana, todo dia tinha o dia de ir trocar os livros, ele pegava o leiteiro de madrugada e ia pra trocar os livros e sempre chegava com cinco livros novos, toda semana e era meu pai que lia pra mim, todo dia, trabalhava na roça o dia inteiro e a noite era...chegava, tomava banho e era a hora de ler, então assim eu tenho memória de muitos livros na infância antes de ir pra escola, e não tinha escola próxima à fazenda, então ele deu um jeito de ir na prefeitura da cidade arrumar um jeito de fazer um grupo escolar lá perto, e aí fez o Grupo Escolar Seu Nico Tavares [risadas, que gracinha!] Que era o nome do prefeito antigo lá que ele gostava, e as professoras iam morar na minha casa, e aí na época que começou a montar essa escola a minha casa começou a ficar muito tulmutuada, né, porque a professora morava na minha casa...eu lembro que teve uma professora que apaixonou por um tio meu, e aí ela falava assim: “Eu vou te dar 10 em todas as suas provas, mas você tem que me ajudar com seu tio” [risadas, trocando 10 pelo tio!] Quando meu pai descobriu isso, ele ficou muito bravo porque ele achava que a escola ia, assim como acho que assim como aconteceu com você, eu aprendi muito mais em casa com meu pai do que na escola porque a escola era multisseriada, os alunos eram de, de pré né, que era da época até a quarta série, aí o que que meu pai fazia, ele comprava os livros, e como a professora morava na minha casa e não tinha muito essas rédeas e tal, eu preenchi o livro todinho, terminei a primeira série! [risadas] Ah, então me dá o livro da segunda, então eu fiz quatro anos em dois ou um e meio [risadas, nossa!] E aí meu pai quando ele descobriu esse rolo dessa professora, eu fui estudar na escola de freiras em Silvânia, e assim, eu falo que eu sou filha da ditadura, sabe, porque, gente é exatamente o contrário da sua infância (se referindo à Joyci), sabe essa questão da, da, de questionar as coisas...ZERO! Eu fui saber que Marx existia na faculdade, então assim eu aprendi, num colégio de freiras você aprende a bordar...lá em Silvânia tem o colégio das freiras e dos padres, eu estudei na escola que tinha só mulher, e o colégio dos padres era só homem, eu fui descobrir que a educação pra meninas era muito diferente (da dos meninos) quando eu fui pra o Ensino Médio, porque aí, porque no colégio das freiras eu conseguia ser a primeira da turma, tirar nota melhor e tal...porque eu sempre fui muito tímida então eu só estudava, né, e quando a gente foi pro Ensino Médio, eu não alcançava os meninos nem que eu estudasse o dia inteiro, eles sabiam, faziam coisas que eu nem imaginava...enquanto a gente tava aprendendo a bordar, eles tavam aprendendo...[isso é tão recente!] É, é muito recente...então assim, as minhas memórias de leitura de infância... Ah, e tem também a questão dos causos, como a gente morava em fazenda, tinha muito um pessoal que ficava, sabe... tipo esses...eles chamavam os loucos... ah o louco tá chegando [risadas] falavam bem assim, os loucos eram contadores de histórias, eles juntavam raízes, colocavam num saco, aí sabe, saíam davam a raiz pra gente em troca de comida, eu lembro que a minha mãe tinha raiz que ela encomendava, né, e aí quando o louco chegava em casa, minha mãe dava a janta, mandava ele tomar banho, porque não tinha jeito de dormir na cama sujo...e aí ele sentava na sala, e a sala da minha casa era enorme assim e tinha, era bem grandona e tinha uma poltronas assim que minha mãe fazia umas almofadas à mão mesmo e colocava, então sentava aquele monte de gente pra ouvir as histórias do louco [criança, adulto, todo mundo?] É, todo mundo, aí era a hora que punha a lamparina lá, né e ele ia contar a história, gente tinha uma história que ele repetia toda vez que ele ia lá porque a gente pedia a do ferrim pequeninim engraçadim bunitim...já ouviram isso em algum lugar alguma vez? [risadas, não!] Eu sei que o ferrim era uma agulha, depois ele transformava numa chave de fenda, depois ele transformava numa bicicleta, num carro, num avião...e isso era assim, sabe essas histórias repetitivas? [tipo lengalenga, né?] Eu não lembro exatamente da história, é mas ele não sabia ler, ele era louco, né! [riadas, era louco] e não era só um, eram vários, e tinha um senhorzinho também, eu lembro do nome dele até hoje, chamava Florentino, era uma família porque a família, como era fazenda, o avô da minha mãe, a gente morava perto da fazenda do avô da minha mãe, ele tinha escravos, e aquela historinha, né, ai, que meu avô era tão bom pros escravos dele que eles não quiseram deixar ele...continuavam morando lá, então tinha a casinha do Florentino, que era um negro que morava lá e a gente adorava ele porque ele também era muito bom pra contar histórias, então direto ele ia lá e contava várias histórias, e ele não repetia, ele não repetia as histórias ele sempre contava histórias diferentes e não sabia ler. Então assim acho que é a questão da cultura oral mesmo né, incrível! [essa memória né] então as histórias sempre são muito presentes na minha vida mesmo assim, e aí quando eu fui pra faculdade, eu trouxe essa questão das histórias clássicas né, e eu gosto muito também das histórias originais que têm o final macabro, a Pequena Sereia que vira espuma...[nossa, lindíssima!], a Bela Adormecida que a sogra dela era canibal comeu os netos e ela teve que fugir pra não comer ela também, sabia disso? [eu gosto dessas também.
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