(gosta da imagem da escolinha das irmãs na qual ela era aluna, no quintal de casa debaixo dos pés de manga e abacate)
SANDRA: Então eu vou contar as minhas, quando você começou a falar, eu comecei, você disse né...as lembranças, né, a memória do primeiro contato com a leitura, com esse mundo e de que que forma que essas leituras aconteceram, eu me lembro bem da minha mãe, meu pai ele trabalhava como guarda noturno, então é...minha família muito supersticiosa, né... cultuando, vários costumes, então o pessoal acreditava em assombração, toda aquela história porque a minha avó era mãe de terreiro, então, todas essas histórias né, perpassava e iam chegando nas gerações mais novas de maneiras diferentes então a gente tinha medo de espírito, do bicho papão, durante a quaresma era aquele cuidado a minha mãe e minhas tias, eu me lembro, não podiam usar esmaltes nem batom né, dentro da quaresma, né, era tudo muito engraçado...aí que me lembro que a mamãe, como o papai trabalhava durante à noite, ela colocava nós, nós saíamos do nosso quarto, íamos pro quarto dela ou ela saía do dela, a gente vivia trocando, e ia pro nosso então no nosso quarto era uma cama beliche que nós somos três né, irmãs, tirando as mais velhas né, que são filhas do meu pai, mas que nesse convívio da minha infância era com as minhas três irmãs, e aí ela ia pro nosso quarto e eu sempre deitava com ela e ela deitava comigo e começava a contar histórias, e aí contava histórias do Rodeirão que ficava lá na floresta e tal e eu ficava, eu amava ouvir as histórias e ficava nossa, né, de onde minha mãe tirava todas essas histórias, quem será que contou pra ela, né eu me lembrava na época, n , minha mãe não estudava e o papai falava que ele não tinha tido a oportunidade de conhecer uma sala de aula os avós dele morreram muito cedo e ele ficou com dez anos foi morar com um irmão dele mais velho que era o padrinho dele, e aí o irmão dele colocava ele pra ajudar a trabalhar na fazenda, os filhos dele, né, do irmão dele, sobrinhos , estudavam e ele dizia assim que queria estudar e o padrinho falava pra ele: “Não Chiquim... ” o nome do papai é Francisco, né, ele falava assim “Não Chiquim... ” aí, perdi ele há quatro anos, (suspiro) fico emocionada, minha referência, tudo que eu sou... tudo o que eu conquistei, né. E aí ele me contava isso né, pra me falar e pras minhas irmãs da importância da escola, do estudo né, aí falava que o irmão dele falava “Não Chiquim... burro velho não aprende, né, burro velho, você nunca estudou...os mininu eles começou a estudar desde pititiquim, desde sete, oito anos, você nunca estudou e burro não aprende, o seu negócio é trabalhar. ” E aí ele falava pra gente né que, quando os meninos chegavam da escola, né os meninos eram quase da mesma idade que ele, então chamavam ele pra ir pra beira do córrego, pra brincar e aí ele ficava falando pros meninos, o que que a tia lá da escola ensina pra vocês? E os meninos às vezes levava o caderno escondido pra mostrar pra ele, então assim, aí minha mãe, eu sabia que o papai não sabia ler, assim, ele lia né, escrevia, muito mal, mas era excelente em matemática, tinha uma mente brilhante pra cálculos, e aí ele ficava ensinando pra gente fazer cálculos e tal e minha mãe num lia, mas contava as histórias e minha mãe também não tinha estudado e ela dizia que tinha vontade de ir pra escola e tal e fiava contando aquelas histórias...e aí eu me lembro que ela contava, contava e nunca lia, e aí eu tinha uma irmã mais velha que eu falava pra ela, é, você conta uma história? Né, aí ela já pegava livro, ela estudava na época e ela já pegava livros e lia e contava as histórias e eu amava... e com a minha mãe era sempre à noite, na hora de dormir, e com a minha irmã eu me lembrava que era pelas tardes, ela estudava de manhã e pelas tardes embaixo do pé de manga que a gente tinha, no fundo do quintal tinha um pé de manga e um pé de abacate enormes, então a gente ia pra lá, colocava o colchão no chão, deitava e ficava olhando pra cima né, vendo as nuvens, embaixo da árvore e ela lendo, e assim, eu amava, e eu me lembro bem que, eu fui alfabetizada antes mesmo de ir pra escola porque essa minha irmã, ela amava ensinar, e o que ela fez, ela chamou mais três colegas que moravam perto, vizinho, né, e mais a minha outra irmã do meio e montaram a escolinha [ai que massa!, risadas externas] era uma escolinha mesmo, e as vizinhas levavam à sério a escolinha porque elas queriam alfabetizar as crianças menores aí faziam a escolinha, e ela conseguiu né, papai falava pra ela, você quer... “olha a Denirse vai ser professora né” e ele tinha muito orgulho “A Denirse gosta de ensinar, vai ser professora...” e aí ele fez uns bancos de madeira lá embaixo desses pé de árvores e colocou esses banco de madeira, arrumaram um quadro, eu sei que foi uma professora que doou, eu acho que...minha mãe fazia faxina na casa de uma professora e aí minha mãe falou que nós gostávamos de brincar de escolinha, aí ela doou um quadro [que gracinha] aí meu pai foi e pendurou esse, esse quadro entre as duas árvores e fez os bancos de madeira e, e ali era, eram as escolinhas, e aí fez um, a parte de sentar e a parte de , a parte alta da gente colocar o caderno em cima, e ali funcionava a nossa escolinha, das minhas irmãs, né, no caso eu era aluna também [risadas, tenho certeza que era a melhor escolinha do mundo!] Pensa! Gente, mas eram muitas crianças, às vezes, eu vim me lembrando hoje, né, eu falo pras meninas olha só, tinha quinze, né, crianças era [uma turma cheia!] Isso! E a minha mãe, eu me lembro que a minha mãe falava, “Eita Chiquim, você fica dando ousadia pra essas meninas” [risadas, ousadia!] “Pra essa menineira, essa menineira faz uma bagunça...” e o meu pai falava assim “Mas é só na hora do recreio!” [risadas] “Deixa elas, é só na hora do recreio, os menino tá passando pelo fundo do quintal, num tá nem passando pelo fundo d a casa, você larga de reclamar!” Minha mãe sempre foi brava, “Ei, Chiquim fica dando ideia pra essas meninas ficar fazendo isso...” E tinha a hora do lanche, né, e as meninas falavam pai vai ter que ter lanche porque as meninas estudaram a tarde toda, vai ter que ter lanche, e ele ria, e falava assim “Aiaiai, pra que que eu fui inventar dessas crianças nessa escolinha...” [risadas] aí ele comprava macarrão, aí eu me lembro que aquela época macarrão num era no pacotinho como a gente vê hoje...meu primo tinha um armazém que chamava Filemon, aí ele ia lá e comprava no Filemon, pegava no litro, e colocava no saco de papel, né, aquele macarrão picadinho, num saco bem grande, colocava num saco de papel e pesava! Era vendido desse jeito![risadas] Era umas balanças de...é tipo com uns pratos né, num era essas balanças de hoje [aquelas assim, que fazem assim] aí pesava esse macarrão e papai levava e aí era a Márcia e a Aparecida, as duas irmãs vizinhas que eram as cozinheiras [eram as merendeiras da escola!] é... e a Nilsa e a Vania davam aula e a Maria Marta, e as duas faziam o lanche, e faziam aquele macarrão, gente, aquele macarrãozim...só com água, sabe?! [risadas] o que elas faziam era que ás vezes pegavam coentro na hortinha quando minha mãe não brigava, né, porque a mamãe era brava, num gostava...ficava sem paciência com nós e com nossas coisas, mas elas pegavam quentinho escondido, pegavam cebolinha e colocavam...era o melhor lanche do mundo, e eu me lembro até hoje, sabe, desse macarrão, elas inventavam de fazer arroz também, né, como cenoura, pra ficar parecendo aquele arroz com charque da escola, carne moída no arroz, e...era muito bom, e eu fui alfabetizada assim, na escolinha das minhas irmãs, quando eu cheguei, eu, e eu ansiosa, né pra ir pra escola, ansiosa, achando que eu ia chegar na escola e ia ser tão bom como aquela escolinha lá do fundo do quintal... fresquinho, vento [risadas] as irmãs não deixavam os meninos brigarem, porque se brigasse o menino chorava e elas ficavam com medo da mãe do menino não deixar mais ir no dia seguinte e a escolinha pra elas era tudo né, o projeto escolinha delas. Aí, tanto é que a minha irmã, ela se tornou professora, mas infelizmente ela desistiu da função, né, devido a uns enfrentamentos que ela teve, e ela optou por desistir, mas foi assim que eu fui alfabetizada e no primeiro dia de escola eu me lembro que eu chorei horrores, minha irmã e minha mãe me deixou e eu chorei muito, não queria ficar, gostava de pegar livros, né, das minhas irmãs, eu me lembro que eu riscava, e...era uma briga, e eu riscava os livros delas porque eu pegava caneta e eu queria escrever não naqueles caderninhos que elas faziam, elas dobravam a folha de papel almaço com pauta, cortava assim na lateral, separava elas e dobrava e às vezes elas enrolavam até uma fitinha colorida pra amarrar, pra fazer uns caderninhos pra gente, e aí eu lembro que eram aquelas folhas de papel almaço com a pauta amarela...antiga...aquelas...aí elas faziam o caderninho, mas aí eu queria escrever no livro [colorido, bonito...] aí eu rabiscava no livro delas e aí era aquela confusão. Mas aí me lembro que no primeiro dia de escola eu não gostei, chorei muito, tiveram que me buscar e eu falei, não, eu quero ficar estudando só aqui papai, num me leva mais na escola não, a escola das meninas é melhor [risadas] e ele falava “Ô meu bedequim preto” [risadas] ele me chamava de bedequinho preto do papai, tem que ir pra escola, e eu, mas as meninas já me ensinou ler, eu já sei, e já sabia escrever algumas palavras, eu lembro que uma das primeiras palavras era banana, né, e eu ficava toda feliz de aprender a escrever banana, essas palavras mais simples e ele falava não mas você tem que ir. Então quando eu cheguei na escola eu tive uma professora maravilhosa na alfabetização, ela amava, deixava a gente manusear os livros literários, era uma maravilha, e ela era uma professora muito sensível, ás vezes os meninos...aí não tem como fugir né, da questão racial, da discriminação, porque quando eu iniciei na escola, devo ter iniciado naquela época eu tinha uns cinco anos quando eu comecei a ir pra escola e quando eu desisti e chorei, num gostei, então quando eu voltei eu já fui pra uma escola pública mesmo, né, já tinha os meus sete anos, e era uma professora que se chamava Aureli, nunca me esqueci ela, então quando uma criança implicava, me xingava, né, “ai olha o cabelo dela!!! Parece bombril, olha ela!!!” [ah, sei, já passei por isso também] “ela é feia, não num quero brincar com você não, olha ela, ela é preta”, aí eu chorava, e eu me lembro que a professora Aureli levava umas fitas coloridas e falava hoje nós vamos arrumar os cabelos mais bonitos que temos aqui na nossa sala...aí vem Sandra, o seu é o primeiro...então ela fazia, né trancinhas, colocava lacinhos, tirava o que minha mãe tinha amarrado o meu cabelo e fazia tudo novamente...eu amava ela, amava ter contato com os livros, e eu pensava em ser uma escritora quando eu crescesse, então assim, minhas memórias de infância, com o processo de leitura foram muito boas pra mim, né, com esse processo de adentrar no mundo da escrita, da imaginação, amava pegar livros da escola, levar pra casa da biblioteca pra ler até que foram acontecendo outras coisas já em a nível de terceira série, né tive uma professora que me discriminava muito, nunca deixava eu me aproximar dela, eu me lembro até hoje, o nome dela era Lourdes, eu sempre pensei, eu, um dia eu quero depois que eu me tornei professora, ai eu queria tanto encontrar a Lourdes um dia, né, eu quero dizer pra ela das marcas que ela deixou em mim, é...queria ser uma professora completamente diferente dela, porque as meninas branquinhas e bonitas podiam abraçar ela, naquela época eu não tinha essa compreensão...[tanta noção do que que...] compreensão do que que era, eu achava estranho, mas eu falava as meninas são mais bonitas, ela gosta mais das meninas que são mais bonitas, eu não entendia o que acontecia, mas quanto à mim ela nunca deixava que eu me aproximasse, eu me lembro que a terceira série era, era, tinha uma leitura no livro que aí todo mundo podia levantar a mão, ler, aí eu levantei a mão e ela disse assim, “Ah...mais...ah, você nem sabe ler, vai ver que nem sabe ler, vai ficar gaguejando, não deixa a Maria Joaquina, a...como é que... a Viviam” A Viviam é minha amiga até hoje... “A Viviam, a Rosângela...” eram as meninas mais bonitas e inteligentes da sala, e eu não podia, aí eu fiquei, eu me lembro que eu fiquei emburrada, eu como assim? Eu sei ler antes de vir pra essa escola! Né, que minhas irmãs tinham me alfabetizado, eu sei ler há muito tempo...que professora chata, aí eu fui e falei pra ela, olha, bruxa, ela “você me chamou de que?” [risadas] me lembro até hoje “Você me chamou de que?” Porque tava aquele silêncio com as outras meninas lendo...eu falei, de bruxa! “Vá pra sala da diretora agora!” Eu falei, eu vou mas, sabe porque você é uma bruxa? Porque você é muito má, eu sei ler, tá? Eu sei ler antes de chegar nessa escola que minhas irmãs já me ensinaram...aí saí chorando e ela foi comigo e me acompanhou, então assim, são essas memórias, é...muitas coisas boas, maravilhosas, mas quando eu saí do seio da minha família, né, e fui pra escola aí as relações que se estabelecem, com o outro, com o que é diferente, isso me marcou muito porque eu me sentia assim uma princesinha lá dentro da minha casa, com as minhas irmãs eu era a mais nova, meu pai tinha outras duas filhas que eram as mais velhas que cuidavam muito bem de mim, mas quando eu cheguei na escola eu vi que não era a princesinha que...o bedequim preto do papai que eu imaginava... eu comecei a sentir o que era esse processo de discriminação e isso machucava muito mas, não tirou de mim o gosto pela leitura, né, o desejo de ler, escrever, então essas são as primeiras memórias de infância...
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