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Memórias Literárias Formativas por Sandra Almeida Ferreira Camargo

Minhas memórias literárias estão intrinsecamente relacionadas a minha trajetória de formação. Por isso, pensar meu processo de apropriação das práticas de leitura e escrita me faz relembrar as dificuldades e os muitos obstáculos superados para que eu conseguisse retornar aos estudos, após anos longe da escola, e lutar para concluir minha formação e me tornar uma leitora e professora. Minhas memórias literárias e formativas apresentam inúmeras contradições, uma vez que, meu pai nunca teve a oportunidade de estudar, de se sentar em uma “carteira escolar” como ele sempre lamentava, e minha mãe só pode concluir o ensino fundamental, na Educação de Jovens e Adultos, anos após o casamento, e com as filhas já “adolescentes”, como popularmente dizem “Já criadas”. Assim, fica evidente que não foi fácil me tornar uma formadora de leitores, personalidades, enfim, de consciências mais humanizadas.

Conforme mencionei anteriormente, meu pai não teve oportunidade de estudar. Meus avós morreram quando meu pai era criança e foi o seu irmão mais velho, que era seu padrinho, que o adotou e criou. O pouco que meu pai aprendeu e desenvolveu nas práticas de leitura e escrita foi com seus sobrinhos que tinham a sua idade e tinham permissão para frequentar a escola, e assim, eles o ensinava nas horas vagas. Papai ressaltava que teve infância distinta daqueles meninos, pois precisava ajudar no trabalho braçal da roça para plantar e colher o alimento da família.

Embora não tenha vivenciado o processo de ensino e aprendizagem escolar, papai valorizava muito os estudos. Ele sempre nos dizia que os conhecimentos que ensinavam na escola e que tornava as pessoas mais sabias, era algo que jamais poderia ser tirado de nós. Para ele, a leitura é uma riqueza sem possibilidade de ser quantificada, resumida a números que lhe definia um nível de valor. E por isso, papai compreendia que estudar era nosso dever e exigia que tivéssemos total compromisso com nossa formação. Lembro-me bem de ouví-lo dizer desde que eu era bem pequena: “o conhecimento é a maior riqueza que uma pessoa pode possuir. Este ninguém poderá te roubar”. Assim, fui alfabetizada em casa pelas minhas irmãs mais velhas, que brincavam de ser professoras em baixo dos nossos pés de abacate, goiaba e manga no fundo do nosso quintal, na periferia do bairro que morávamos, ainda hoje conhecido como “a invasão”. Naquele quintal não apenas eu com seis anos de idade, mas também os filhos dos vizinhos foram todos alfabetizados pelas minhas irmãs. Foi assim que mergulhei no mundo da leitura.

Recordo que as “meninas professoras” organizavam os horários das aulas durante a tarde, de uma maneira que havia o momento da escrita, da leitura do conteúdo, e havia o horário das leituras literárias. Aguardávamos ansiosamente o momento da “leitura das histórias”. Elas não interpretavam as vozes de cada personagem em tonalidades diferentes, como belamente fazem os “contadores de história” nos dias atuais. Porém, havia um fascínio que nos encantava. Elas simplesmente liam, e nós tínhamos o dever de ficar em silêncio, porque depois as “professoras” queriam ouvir as partes que mais gostamos, e todos tinham que dizer algo.

Tenho nítida a lembrança de viajar em meus pensamentos enquanto ouvia as histórias narradas. É bem verdade que as professoras nem sempre nos apresentavam literaturas “adequadas” a nossa idade. Nem sei se literatura pode ser enquadrada em níveis de idade especificamente biológica, para serem consideradas como “adequada” a certo público, uma vez que, compreendo que uma das funções da literatura é nos apresentar tempos e espaços diferentes, é nós fazer caminhar nos trios da imaginação, e nesse campo vale toda curiosidade, criatividade e imaginação. Inclusive sobre o desconhecido.

Recordo-me que minha irmã Nilsa, gostava de ler histórias que teria continuação sempre nas próximas aulas. Ela dizia que isso mexia com a nossa imaginação. Nos deixaria curiosos pela continuidade. Só sei que funcionava direitinho. Mal esperávamos o início das aulas para chegar o momento das histórias. E realmente era momentos mágicos de curiosidade e muita diversão. E meu desejo de aprender a ler era cada dia maior, porque também queria poder pegar o livro e sozinha ler sem ter que esperar por ninguém.

A coleção de livros literários denominada como “Coleção Vaga-lume” era o referencial teórico mais utilizado pelas minhas irmãs. Me lembro bem do livro que contava a história do “Zezinho o dono da porquinha preta” do autor Jair Vitória. Não sei se esse livro é uma das lembranças mais fortes na minha memória dessa época porque papai também criava porcos e nosso amor pelos filhotinhos era imenso. Certo é que, essa história sempre esteve gravada em minha memória. Da mesma forma, adorava ouvir minha irmã ler “A Ilha Perdida” de Maria José Dupré, eu recriava em minha mente toda aquela narrativa, só mudava as personagens. Por muitos anos desejei vivenciar aquela aventura junto a minha melhor amiga, e apostava que um dia aconteceria.

Também me lembro das histórias clássicas do João e da Maria narradas oralmente por minha mãe no momento de dormir. Era curiosa para ler a história no livro. Ficava imaginando a imagem de João e Maria. Queria visualizar as cores e formas que haviam na floresta. E também queria saber se minha mãe contava a história como era de verdade, ou se ela diminuía a história a cada vez que contava, para dormirmos mais cedo. Ela contava a história da Rapunzel, só que forma diferente daquela contada no livro. Eu sabia que as histórias contadas por minha mãe sem o livro, eram mais fantasiosas, mas aquelas que minhas irmãs liam, essas sim, tinham imagens e sempre começavam e terminavam da mesma forma, não haviam surpresas diferentes com novos acontecimentos a cada vez que elas liam. Mas, eu gostava de ouvir todas elas.

Aos poucos fui aprendendo a reconhecer as primeiras letras nos livros de literatura infantil que minhas irmãs me apresentavam, e nas tarefinhas que elas me passavam. Muitas vezes as perguntas eram orais e sobre os acontecimentos das histórias que eu ouvia, pois ainda não sabia ler e escrever sozinha. No entanto, com algum tempo, quando papai e mamãe se surpreenderam eu já estava lendo e escrevendo as primeiras palavrinhas: papai, mamãe, maninha. O nome do nosso cachorrinho “veludinho” e das frutas preferidas; melancia, uva, banana... E assim o tempo passou e chegou o momento tão esperado de ir para a escola.

Lembro-me bem da minha primeira professora na turminha pré-escolar da escola estadual do meu bairro. O nome era Aurelí! Como esquecer daquela moça tão bonita e meiga. Ela gostava muito de nos dar quebra-cabeças e outros joguinhos para montar, enquanto nos observava e outras vezes enquanto fazia pequenas trancinhas e colocava lacinhos coloridos nos meus cabelos. Mas, eu achava estranho os momentos da história na salinha de aula com ela. Ela nunca levava livros literários, sempre contava histórias oralmente e elas eram sempre curtas, eu dizia que eram histórias pequenas que ela mesma inventava, porque nunca tinha livros. Eu achava muito esquisito, porque a gente não via a imagem das personagens de quem ela contava as histórias. E ela sempre trocava os nomes e confundia as falas. E eu não entendia porque ela não levava os livros.

Às vezes a professora Aureli até nos dava umas tarefinhas com nenhuma palavra, apenas com desenhos feitos para nós pintarmos. Eu curiosa que só, vivia perguntando porque ela não escrevia no quadro para nós copiarmos e respondermos no caderno e porque não levava livros de verdade para nós lermos e conhecermos os personagens. Ela respondia que só podia fazer isso nas outras sérias seguintes. E ela achava muito interessante meu interesse e o fato de eu já conseguir ler e escrever “tão pequena”. Lembro que ela achou necessário conversar com meu pai para explicar que estar avançada na leitura e escrita estava adiantando meu processo de desenvolvimento e que isso nem sempre fazia bem às crianças. Papai ouvia com respeito e quando chegava em casa dizia que o que não fazia bem era ficar só brincando sem ter tarefa para casa. E logo dizia para minhas irmãs me dá reforço passando tarefas para eu fazer em casa.

Quando fui para a antiga primeira série, só permaneci na turma por um mês, a professora disse que eu estava muito avançada, assim, fui transferida para a segunda série e achei maravilhoso ficar na sala com crianças maiores. Mas, nem tudo foi tão bom como eu imaginava. A escolarização dos processos educativos nem sempre possibilita ou acrescenta o prazer em aprender, em conhecer e descobrir o mundo. Os métodos de ensino, a didática utilizada por cada professora e professor pode interferir diretamente no desejo de aprender das crianças. E além disso, o processo doloroso da discriminação racial se fez presente na minha trajetória de aquisição da leitura e da escrita.

Como mencionei anteriormente, meu processo de formação se iniciou em minha própria casa, junto às pessoas que eu amava, certamente o afeto que envolvia o processo de apropriação das primeiras palavras influenciaram positivamente o meu desenvolvimento e gosto pela leitura. E assim, foi fácil apaixonar-me pelos livros e pela escrita ainda que, de forma bem primária. É possível dizer que nos primeiros anos escolares ainda mantive minha paixão pela leitura, sempre pegava livros literários emprestados na biblioteca da escola pública em que estudava e os lia em casa durante a tarde. Lembro-me que gostava de ler histórias de magia, pois enquanto lia me sentia dentro do mundo que a história me contava, assim podia me transformar no que desejasse e viver coisas que nunca viveria no mundo real, por ser negra e pobre.

Porém, após os primeiros anos de escola, comecei a vivenciar situações que para mim naquele momento se apresentaram como barreiras, e que, sem dúvida, interferiram na continuidade do desenvolvimento da minha aprendizagem, pois os fatos ocorridos aos poucos foram me silenciando na sala de aula. Refiro-me ao preconceito que se manifestava abertamente e às discriminações que passei a enfrentar.

Assim, os novos obstáculos que se apresentaram na escola foram fazendo com que eu perdesse o encanto que sentia pela leitura e escrita, pois eu sonhava em ser uma 12 princesa, assim como aquelas dos contos de fadas que eu tanto lia. Porém, isso começou a apresentar-se como impossível, pois logo ia compreendendo que todas as princesas eram brancas, com olhos azuis e longos cabelos lisos e loiros. Suas roupas eram fantásticas, lindas e bem desenhadas. Moravam em belos castelos, cercadas de muito luxo, onde jamais vivenciavam qualquer tipo de necessidade. A minha realidade era bem outra. E isto, os colegas da sala de aula faziam questão de destacar; “negra do cabelo enrolado, roupas simples e gastas, sempre o mesmo calcado, e moradora de favela”. Não existiam princesas negras nos contos de fada, ou seja, na literatura que era apresentada pela professora em sala de aula.

Lembro-me de que na terceira e quarta séries, a escrita de textos era uma atividade que era dada como castigo pela professora. Se conversássemos em sala de aula ou descumpríssemos suas ordens, éramos obrigados a fazer cópias de extensos textos, não nos era permitido criar histórias, nada de usar a criatividade. Tínhamos que sentar em uma cadeira na frente da sala virada para turma, que olhava e ria o tempo todo daquela situação de exposição e humilhação. Ou ainda, dependendo do “erro” cometido, a cópia do texto era feita de pé, atrás da porta. Mas, o castigo variava de acordo com a professora que o aplicava. Outras vezes, a professora não permitia que saíssemos para o recreio e tínhamos que ficar na sala com a porta fechada, fazendo cópia de textos fragmentados do livro didático. Textos que não apresentavam nenhum sentido. E se tinha algum, se perdia pela forma que era imposto, como tortura física e psíquica.

Hoje, penso que se, ao contrário de nos mandar copiar textos de diferentes gêneros soltos, sem significado algum naquele momento do nosso processo de aprendizagem, as professoras nos orientassem a ler livros literários e depois compartilhar as históricas com a turma, seria muito mais formativo e eficaz. Certamente no início da leitura ainda podíamos até achar que era um momento de pagar sentença pelas ações de desobediência em sala de aula. Porém, ao adentrar no mundo da história que cada livro nos contaria, com certeza a nossa imaginação infantil nos levaria a exercitar nossa criatividade, assim, desenvolveríamos as habilidades percepção, atenção, curiosidade e estaríamos desenvolvendo a nossa habilidade de escrever e também criar novas histórias. Como sabemos, é por meio da leitura que aprendemos o novo, a cada palavra, frase ou estrofe conhecemos um pouco mais.

Infelizmente, a maneira que acontecia na sala de aula fez com que a produção escrita fosse compreendida como sinônimos de repressão e castigo. Aos poucos fui perdendo aquele grande desejo que tinha de estar na escola e de aprender, de ler e escrever. As piadinhas por parte dos colegas e, muitas vezes, até por parte das professoras, faziam com que eu me sentisse inferior e diminuísse o meu desejo de estar naquele espaço, e tudo o que dali fazia parte passou a ter uma representação negativa para mim. Assim, situações objetivas e subjetivas tentavam dizer que meu lugar não era nos bancos escolares e sim em qualquer outro lugar que reafirmasse minha “condição de inferioridade” pela cor da minha pele.

Além da literatura, acredito que a disciplina de História, entre as outras, seria uma das que mais poderiam ser utilizadas para desfazer essa visão hipócrita e distorcida que ainda hoje está presente no interior da escola, universidade e demais espaços sociais, sobre o negro, sua cultura e história, mas com o auxílio dos livros didáticos que sempre apresentavam os negros em situação de escravidão e inferioridade, era reforçado as piadas, as brincadeiras e, por fim, a visão preconceituosa sobre o negro.

No entanto, nos diferentes contextos da vida escolar, vivenciei diversificadas experiências no que diz respeito à minha própria formação como aluna da escola pública, vinda da classe trabalhadora e principalmente como leitora. É indispensável enfatizar que após várias decepções, humilhações e constrangimentos, ao permanecer na escola, por pressão dos meus pais e imposição social, tive também o contentamento de encontrar boas educadoras que contribuíram para que eu interiorizasse o desejo de apropriar-me dos conhecimentos que poderiam me dar esperança de alcançar um objetivo diferente, de enxergar o mundo de outra forma, de vivenciar outras realidades que não fossem determinadas pelo meu pertencimento étnico-racial e de classe. Compreendo que só agora é possível fazer essa reflexão sobre todo o processo educacional que vivenciei, pois hoje sei lidar com o preconceito racial e superar as discriminações, sem deixar que estas me impeçam de caminhar. Porém, é claro que quando vivenciava aqueles momentos repletos de preconceitos e discriminações e que sentia individualmente na pele todos os conflitos de uma sociedade racista e classista, eu não tinha maturidade ou autonomia que me permitisse pensar ou mesmo fazer esta análise. Mas, posso afirmar que muitas das questões que me despertam inquietações, no tocante à formação de leitores e da personalidade dos alunos em nossas escolas públicas atuais, já estavam presentes naquela época e, infelizmente, ainda permanecem. Embora nos dias atuais temos uma rica produção literária que enfatiza a beleza e as diferentes culturas dos povos negros.

Entendo que todo o contexto discriminatório e preconceituoso tem se manifestado por séculos de forma a silenciar o negro na sala de aula e nos demais espaços de poder. A população negra é invisibilizada no contexto geral da sociedade com a finalidade de que permaneçam na condição de submissão, o que interfere significativamente no processo de formação de suas personalidades, e no desenvolvimento da consciência. Senti na pele, por ser negra, o impacto deste contexto educacional; vivenciei no espaço escolar todo um processo discriminatório, classificatório e competitivo, o mesmo que vivenciei anos depois na universidade. Compreendo que isso ocorre por estar imersa em um sistema que pré-define possibilidades e direitos de escolha por considerar e hierarquizar algumas categorias que vão desde o pertencimento de classe, a cor da pele e textura dos cabelos.

Minhas memórias literárias se constituem por contradições e processos de rupturas e fragmentações que ainda hoje tento organizar. Quando cursava o primeiro ano do curso de contabilidade em um colégio público da rede estadual decidi me casar, tinha a idade de dezesseis anos. Assim, logo que deixei a casa de meus pais, deixei também de atender à pressão que eles faziam para que eu concluísse a educação básica. Abandonei os estudos e me dediquei apenas ao meu casamento, a igreja evangélica que passei a frequentar e ao primeiro filho. Alguns anos depois, percebi que sem ter no currículo a formação básica jamais conseguiria uma vaga no mercado de trabalho, competitivo e com exigências por competências que eu não tinha. Por necessidade, retornei aos estudos, novamente para o colégio público estadual, e ali cursei o ensino médio na modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Durante o meu segundo ano na EAJA, surgiu um concurso pela Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, fui aprovada para o cargo administrativo e desenvolvia a função de merendeira em um Centro de Educação Infantil (CMEI). Quando conclui o Ensino Médio e também por causa das vivências na instituição de Educação Infantil, me reaproximei da educação e minhas memórias me trouxeram as boas lembranças do desenvolvimento da aprendizagem naquela escolinha informal do meu tempo de infância. Recordei-me do quanto me encantava pelo processo de ensino e aprendizagem, do respeito que tinha pelas minhas irmãs que eram professoras, percebi que vivenciava essa mesma admiração pelas professoras do CMEI em que trabalhava. Tendo acesso contínuo aos agrupamentos infantis, me encantava pelas atividades desenvolvidas com as crianças e decidi que também queria tornar-me professora. Dediquei-me a estudar com o objetivo de ser aprovada na Universidade Federal de Goiás. Sendo funcionária administrativa da SME de Goiânia, naquele momento, desempenhando a função de limpeza, não teria condições financeiras para pagar uma faculdade privada.

Passava noites inteiras estudando para alcançar meu objetivo. Aos poucos ia compreendendo melhor a importância fundamental de termos bons professores que orientassem o rigoroso processo de apropriação de conhecimentos científicos, pois o que naquele momento eu intuía e hoje compreendendo cientificamente, é que não aprendemos individualmente – aprender é sem dúvida um processo histórico, cultural e social. Recorri a um curso pré-vestibular, mas no terceiro mês, devido às condições financeiras, precisei desistir.

Prossegui os estudos em casa, seguindo as orientações dos planos de aulas que os professores haviam apresentado nas primeiras aulas daquele cursinho. Certo é que, por meu esforço pessoal e pela contribuição e incentivo de algumas das minhas irmãs (principalmente da Adelice e Nilsa) e, claro do papai, de professoras colegas de trabalho e outras pessoas que faziam parte das minhas vivências sociais, fui aprovada no primeiro processo seletivo de vestibular que realizei na UFG, para o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação, no ano de 2004/2005.

Minhas vivências no curso fizeram com que eu me encantasse a cada dia mais pelo conhecimento científico e me fez retomar o valor da leitura e sua fundamental contribuição para o aperfeiçoamento da escrita. Afinal, leitura e escrita são práticas indissociáveis. Foi durante o curso de pedagogia que conheci diferentes gêneros textuais e literários. Me recordo de termos trabalhado a importância da literatura no processo de ensino e aprendizagem das crianças. A professora Simei Araújo ministrava a disciplina História da Infância e nos propôs trabalhar literatura infantil. Ela nos deixou escolher dois livros, a partir deles deveríamos planejar aulas e apresentar para a turma. Eu escolhi “Os cavalinhos de platiplanto” de José J. Veiga, escritor goiano que nasceu em Corumbá de Goiás no ano de 1915. Nesse livro, o autor realiza uma mistura encantadora de fantasia e realidade cotidiana. Assim, o autor consegue trabalhar os sonhos e os sentimentos desde a alegria e a esperança até a tristeza e o sentimento de perda. Tudo isso nos doze contos que apresenta.

O segundo livro que escolhi foi “Negrinha” de Monteiro Lobato. É claro que a escolha foi intencional. Era preciso desmistificar certas afirmações sobre o caráter “nada racista ou preconceituoso” que o autor reafirma em sua escrita. O sítio do pica-pau-amarelo, outra grande obra do autor, pela qual ele ficou mundialmente conhecido, também apresentava questões a serem refletidas, quando a vovó branquinha (dona Benta) tinha garantido o seu lugar na sala e seu direito de fala, já a tia Nastácia, mulher negra e empregada, estava sempre na cozinha, e quando demostrava o seu saber, este era relacionado a culinária e ao saber popular pouco valorizado. Enfim, esse segundo livro despertou grandes polêmicas. Durantes várias aulas discutimos sobre as reais intenções do autor na época que escreveu o livro “Negrinha”.

Certo é que, no mesmo ano em que concluí o curso de pedagogia, realizei o concurso público da prefeitura de Goiânia e fui aprovada. No início do ano seguinte, em 2011, tornei-me professora da Rede Municipal de Educação. Minhas primeiras vivências como professora foram em uma escola de tempo integral, num momento em que a experiência com o ensino integral na rede estava iniciando. Os professores e funcionários enfrentavam muitos problemas para conciliar os tempos e espaços, bem como o processo de ensino e aprendizagem nessa nova forma de organização escolar. Logo percebi que propor uma bem planejada “oficina de leitura e escrita” seria uma boa iniciativa para auxiliar os educandos a se apaixonarem pela literatura. A ideia era mostrar às crianças que a leitura não é tortura e não deve ser utilizada como punição. Assim, propus essa oficina e posso dizer que foi um sucesso. Apresentamos muitos trabalhos, desde livros com histórias criadas pelas alunas e alunos, até apresentações teatrais encenando diferentes histórias presentes nos livros literários. Essa oficina contribuiu de forma significativa para o processo de alfabetização dos estudantes e auxiliou no desenvolvimento de inúmeras outras habilidades cognitivas e socioafetivas.

Desde então, como professora da RME independente da turma que eu assumo a cada ano, sempre desenvolvo projetos de literatura. Acredito que é por meio da leitura que o mundo se revela. E quando digo leitura, não estou me referindo a um único gênero literário, mas sim, a todas as modalidades de leitura que compõem a cultura letrada. Também enfatizo a importância das histórias orais, dos contos populares, sem eles não existiriam os diversos gêneros literários que hoje conhecemos. Minhas memórias literárias me fazem refletir desde o primeiro livro que li para minha família ouvir; A margarida Friorenta de Fernanda Lopes de Almeida, até os clássicos de Karl Marx e outros que leio desde a graduação até o presente momento durante o doutoramento em andamento.

A aprendizagem que se efetiva por meio da literatura é imensurável. Ler os poemas ilustres de Conceição Evaristo, ler Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drumond de Andrade com suas fabulosas crônicas da vida real, ter o prazer de ler e analisar as palavras e o contexto social explicito em “Quarto de despejo” por Carolina de Jesus, fazer o mesmo ao ler “Por falar em liberdade” de Beatriz Nascimento, “Velhas tristezas” de Cruz e Sousa, ou ainda “Nas rotas dos tubarões: o tráfico negreiro e outras viagens” de Joel Rufino dos Santos, ou “Navio negreiro” de Castro Alves, entre outras grandes e outros grandes intelectuais, é conhecer e reviver a história com o sentimento de não repetirmos os mesmos erros, e isso nos faz, nos torna cada dia mais humanos.

Enfim, considero que a literatura é uma prática social que deve ser apropriada e desenvolvida por todas as pessoas. Faz parte do processo de formação da personalidade e consciência. É por meio da leitura que as mulheres e os homens tornam-se humanizados. Por isso, concordo plenamente com Vigotski quando este afirma que palavra e pensamento constituem-se dialeticamente. É assim que as funções psíquicas superiores se desenvolvem. Assim, concluo essa síntese das minhas memórias literárias dizendo que o pensamento não se expressa pelas palavras, como afirmava o bielo russo já mencionado, o pensamento é a palavra e é por meio desta que o pensamento se constitui. Assim, ler é enxergar e compreender o mundo e escrever é ousar transformá-lo, como afirma o brasileiro Paulo Freire.

Mary Baleeiro. Aquarela Sandra. fev.2019.15x21

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