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Minhas primeiras lembranças por Danúbia Jorge

As minhas primeiras lembranças a respeito da minha relação com a palavra escrita são de momentos em que eu e minha irmã estávamos sentadas na cama com minha mãe e ela lia em voz alta capítulos do Apocalipse, último livro da Bíblia Sagrada. Lembro-me que minha mãe falava de um “fim do mundo”. Evidentemente aquilo me deixava aterrorizada. Por que o mundo estava acabando, se para mim ele apenas havia começado? O que significa essa tal de marca da besta? Lembro-me de monstros cheios de asas, olhos e coisas terríveis. Minha mãe dizia: vocês pensam que o inferno é horrível? Nem imaginam então como será o lago de fogo para onde vão todos aqueles que não aceitarem Jesus! Durante toda minha infância e grande parte da adolescência as leituras sagradas nortearam meu comportamento, minha forma de estar no mundo e minha sexualidade. O medo daquele lago de fogo foi minha bússola moral por muito tempo.

Eu também me recordo da minha irmã me ensinando o alfabeto. Sempre que eu conseguia dizer todas as letras sem errar ela me dava uma balinha. Nessa época eu queria muito entrar para escola. Queria tudo que a escola poderia me oferecer; lancheira, cadernos, lápis e borrachas, uniforme e amigos. Depois de esperar bastante tempo para que surgisse uma vaga em uma escola considerada “forte” no bairro, por causa da minha insistência minha mãe me matriculou na única que havia vaga, a escola “fraca”. Se a escola era fraca, logo ficou provado que eu não era (modéstia à parte). Mesmo tendo entrado em maio, fui a primeira a aprender a ler e a escrever. A professora ficou muito orgulhosa e me exibia como uma aluna prodígio. Chamava outros professores e a diretora para ver como eu lia sem gaguejar, como minha letra era bonita... “Você brilhou!” Ela repetia sempre e me enchia de orgulho de mim mesma.

Assim que aprendi a ler, nunca mais quis parar. Lia tudo que estava escrito no muro, para o desespero do meu pai, quando eu decifrei a palavra “buceta” no muro do vizinho e ele insistia que era “botina”. Lia a bíblia, lia todos os fragmentos de textos dos livros didáticos. Quando algum me interessava mais eu falava para minha mãe que eu precisava daquele livro porque a professora havia pedido (a Danúbia leitora de bíblia se sentia culpada por mentir). Ela sempre comprava, sem questionar ou duvidar. Eu lia repetidamente, todos os dias. Acredito que o primeiro livro que eu li inteiro foi “O bonequinho doce”, não me recordo do autor agora. Era um livro usado e já meio desgastado, assim como todos os livros que minha mãe comprava. Ainda hoje conservo o hábito de comprar livros de sebos, por ser de preço mais acessível e pelo charme que só um livro usado e com as páginas amarelas possui.

A minha relação com a leitura fez com que eu fosse uma excelente aluna até a 4ª série. Tirava notas boas, era popular, queridinha das professoras. Mas algo mudou quando entrei para o ginásio. A adolescência chegou, e junto com ela a timidez, as inseguranças, a baixa autoestima. Na 5ª. série passei o ano inteiro sem fazer nenhum amigo, talvez também por isso comecei a frequentar compulsoriamente a biblioteca escolar. Eu passava o recreio inteiro naquele lugar. Lia mais de um livro por semana. Com 11 ou 12 anos eu já havia lido Dom Casmurro e Hamlet. Desde então eu já mostrava predileção por livros de autores consagrados.

Resgatando minhas lembranças, não consigo relacionar meu gosto por leitura a um professor específico. Não me recordo de nenhuma professora lendo algum livro, nem mesmo nas séries inicias. Todas as atividades de literatura eram mecanizadas, sem graça, e eu não me engajava em nenhuma, até porque já tinha lido livros muito mais interessantes do que aqueles indicados pelos professores. Lembro-me de professores fazendo atividades descontextualizadas, desinteressantes, de irem para a sala e só pedirem para os alunos abrirem os livros e responderem... Isso me faz não querer ser assim e oferecer atividades que façam sentido para os meus alunos. É claro que nem sempre é possível, mas na maioria das vezes eu tento. Agora na rede pública percebo que essas crianças não possuem muitos modelos de leitores. Muitos vivem com pais e avós analfabetos, em casas de só um cômodo. As condições materiais impedem que essas crianças sejam leitoras. Então a escola precisa elaborar atividades efetivas.

Alguns livros banais também tiveram grande impacto na minha adolescência, como O estudante, da autora Adelaide Carraro. É um livro bastante sensacionalista e cheio de estereótipos sobre o uso de drogas. O personagem Renato tinha uma vida perfeita: bonito, bom moço, educado e gentil, até que entra para o mundo das drogas. Ele vai causando um rastro de destruição por onde passa e não consegue se regenerar até que acaba morto pelo seu próprio pai. Durante muito tempo foi o impacto desse livro que impediu que eu tivesse qualquer contato com qualquer tipo de droga durante a minha adolescência.

O meu dia a dia sempre foi rodeado de leitura. Assim que consegui meu primeiro emprego, aos 16 anos, fiz assinatura das revistas Superinteressante e Época. Frequentava a Biblioteca do Sesc, lia no ônibus, mas ia mal na escola. O Ensino Médio foi concluído depois de muito esforço, pois eu já trabalhava e às vezes chegava em casa e não queria ir para a escola, por estar cansada e por achar enfadonho. Mas mesmo assim chegou o momento de decidir o meu futuro. Todos os testes vocacionais que eu fazia sempre apontavam para os cursos de humanas, principalemnte Letras e Jornalismo. Analisei a concorrência, coloquei na balança qual dos dois cursos me ofereceria maiores chances de conseguir um emprego e optei por Letras.

A princípio eu não tinha a menor vontade de ser professora, e por isso licenciatura para mim estava fora de questão. No entanto, com o passar do tempo percebi que minha única saída seria dar aulas. Então comecei a aceitar o fato de ser professora. Foi difícil. Eu pensava: nunca vou saber o bastante para ser professora. A sorte foi ter encontrado professores encantadores em minha graduação. A primeira foi a professora Sueli Maria de Regino, uma mulher culta, inteligente e que falava de mitologia, de teatro e de poesia de uma forma muito simples e encantadora. Ela despertou em mim o desejo de ler contos de fadas, mitos e lendas das mais variadas culturas e poetas como Federico García Lorca.

A professora Solange Fiúza também foi uma influência positiva, ela abriu os caminhos da poesia para mim. Me fez ler Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Mario Quintana, Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade. Poesia tornou-se o meu gênero literário preferido e a “culpa” e responsabilidade é toda dela.

Penso que um leitor literário de verdade consegue se lembrar de pelo menos um poema, conto ou romance para qualquer situação da vida. Geralmente é nisso que eu me apego nos momentos difíceis. Foi assim com a morte do meu pai. Eu havia lido Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, há pouco tempo, então muitos trechos e frases ecoavam vez ou outra dentro da minha cabeça. Uma dessas frases surgiu no velório do meu pai, quando eu me recusava a entrar na sala de velório. "A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão tomando conta dele a dentro..." Naquele momento eu pude entender que a literatura tem o poder de nos amparar nos momentos de adversidade, porque todo e qualquer drama e sofrimento já foi enfrentado por algum personagem literário.

Neste momento de escrito, lembro-me que outro texto literário foi crucial para provocar uma cura psíquica em mim. Eu me envolvi em um relacionamento doentio, abusivo e prejudicial. Desvencilhar-me dessa pessoa foi um processo muito difícil, pois havia várias ameaças, agressões e chantagens. Quando essa relação finalmente chegou ao fim, me senti pequena e fraca por ter me deixado prender em algo que parecia uma teia de aranha. Eu me perguntava: mas eu sou feminista, sou bem informada, como pude entrar nessa cilada? E durante muito tempo eu não me perdoei por ter deixado uma pessoa me machucar tanto.

Acontece que um dos meus contos de fadas preferidos é “A moça tecelã” de Marina Colasanti. Sempre leio para os meus alunos e para mim. Em uma dessas leituras eu me dei conta que a moça tecelã também viveu um relacionamento doentio com uma pessoa egoísta que só lhe fazia mal. E que levou tempo até que ela tomasse coragem para destruir tudo aquilo que lhe fazia mal. No entanto, no momento certo ela fez o que tinha que ser feito. Como eu, que também era uma moça tecelã que retomou sua vida assim que foi possível, assim que teve forças para tanto.

Eu gosto de oferecer leitura a todos que me cercam. Empresto livros de boa vontade, não me magoo se eles não voltarem, o importante é que sejam lidos. Já fiz algumas pessoas lerem Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez e isso se tornou um laço afetivo entre mim e essas pessoas, pois sempre que nos encontramos falamos sobre as personagens. Esse livro me fez empreender uma viagem até Cartagena das Índias e Aracataca, na Colômbia. Conheci lugares citados nos livros de Garcia Marquez, lugares de sua biografia e o mais emocionante foi visitar a cidade natal desse autor. Ao chegar à cidade, ao invés de me sentir feliz, como esperava, me senti triste. Era como se eu estivesse mesmo em Macondo, a cidade fictícia de Cem anos de solidão. Logo na entrada me deparei com um trem com mais de 180 vagões. Lembrei-me de um episódio do livro em que três mil operários são assassinados covardemente por estarem protestando por questões simples e básicas. Os corpos foram todos amontoados nos vagões de um trem.

A cidade era pacata, silenciosa e com muitos velhos tristes vagando pelas ruas. Talvez a leitura da obra tenha contaminado a minha visão, mas foi essa a impressão que a cidade de Aracataca deixou em mim. Conhecer a Casa Museu Gabriel Garcia Marquez foi uma das grandes realizações da minha vida, não tenho dúvida disso.

É claro que tudo isso acaba refletindo na minha prática enquanto professora. Eu trabalho para que o livro vire algo rotineiro na vida das crianças. Eu sei que elas não têm o privilégio de ter um familiar que leia para elas. Por isso, na minha sala sempre tem leitura literária. Acredito que primeiramente os educadores precisam entender que a literatura fala de nós. Ela não existe para ensinar alguma coisa, ela existe para te fazer pensar sobre alguma coisa. Sobre vida, morte, dor, amor, alegria e tudo que movimenta nossa vida. As atividades precisam ter mais relação com a vida. Ao conversar sobre uma obra lida as crianças podem entender muitas coisas ou duvidar de muitas outras. A literatura também te ajuda a organizar o caos e a elaborar alguns sentimentos. Mas primeiramente a leitura precisa ser significativa para o professor.

Certa vez tive que trabalhar com o livro “O pequeno príncipe” em uma turma de 6º. ano e o trabalho foi desastroso. Reconheço a importância dessa obra para muitos, mas para mim ela nunca significou muito. Então eu não consegui desenvolver nada porque eu estava tentando fazer com os alunos gostassem e na minha cabeça eu só conseguia pensar “Que livro chato!” Desde então eu prometi a mim mesma de que nunca mais trabalharia com alguma obra que não fosse importante para mim. Em outra ocasião, trabalhei com meus alunos o livro “A bolsa amarela” e foi uma das experiências mais linda que já tive em minha carreira. As crianças construíram bolsas nas quais colocaram os sonhos, conversamos sobre medos, desejos, problemas familiares e amizade. É muito bom quando você escuta de um aluno: - Professora, este é o melhor livro que já li na minha vida!” A leitura precisa deixar de ser uma atividade meramente escolar e isso é o maior desafio.

Um dos melhores livros que já li sobre leitura se chama “A arte de ler ou como resistir à adversidade” de Michele Petit. Nele, a autora francesa relata o trabalho de mediadores de leitura que levam literatura para as situações mais adversas: centro de apoio a refugiados, presídios, bairros periféricos e altamente violentos, etc. Nesta obra, a autora fala algo que tem se tornado meu lema como mediadora de leitura: mesmo que aquelas pessoas que tiveram contato com a obra literária não se tornem grandes leitores literários, elas poderão pelo menos acrescentar mais palavras em suas próprias histórias nomear sentimentos desconhecidos para aprender a lidar com eles. Um dos capítulos da obra relata um trabalho literário feito com crianças que passaram por situações traumáticas e por isso possuíam “um olhar de pedra” que só o contato com contos de fadas foi capaz de desfazer.

Vou concluir este relato com alguns trechos maravilhosos do livro citado acima:

“Os livros adoram a errância. Livros que ficam nas bibliotecas são livros tristes.”

“Para os cidadãos vivendo em condições normais de desenvolvimento, um livro pode ser uma porta a mais que se abre; para aqueles que foram privados de seus direitos fundamentais, ou de condições mínimas de vida, um livro é talvez a única porta que pode permitir-lhes cruzar a fronteira e saltar para o outro lado.”

“Os livros eram, naquele lugar, moradias provisórias, a maneira de recriar um pouco a casa perdida.”

“Os textos lidos abrem aqui um caminho em direção à interioridade, aos territórios inexplorados da afetividade, das emoções, da sensibilidade; a tristeza ou a dor começam a ser denominadas.”

“Gostamos de um livro na medida em que algo que acreditávamos perdido, um conhecimento sobre nós mesmos, ressurge. Ler é assistir a esse retorno.”

“Eu compro livros que nem sempre terei tempo de ler, para não arriscar deixar passar aquele que, finalmente, saberá tudo sobre mim.”

Mary Baleeiro. Aquarela Danúbia. fev.2019. 15x21

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