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Quem lê para mim, me lê? por Karol Almeida

Faz tempo já... ganhei minha primeira coleção de livros quanto tinha nove meses de idade (isso minha mãe me contou, claro, porque não me lembro). Mas me lembro das primeiras leituras feitas dessa coleção pela minha mãe, ela foi a primeira narradora de minhas aventuras pela leitura, me lembro de relance que ela lia e logo dormia, sendo que a primeira proposta era para eu dormir, mas eu não dormia...Ficava ainda algum tempo remoendo as histórias todas, todas aquelas aventuras coloridas que na maioria das vezes eu não entendia, mas admirava. Era a Coleção Joinha, artefacto bem caro para a época – minha mãe certamente abdicou de alguma coisa para me proporcionar tamanho prazer – essa tal coleção tinha capa dura e furta cor, as imagens das personagens das histórias se sobrepunham num lance mágico de aparecimento / desaparecimento. Por dentro, os desenhos eram lindos, coloridos, logo seguidos de letrinhas pretas e bonitinhas que me deixavam bastante curiosa...Como acontecia, como, ao fechar cada livrinho, será que as letrinhas se misturavam e bagunçavam toda a história e personagens formando novas aventuras? Como era possível, ao fechar e abrir novamente cada livrinho que as letrinhas como num passe de mágica voltassem novamente aos seus lugares contando sempre a mesma história? Era por isso que eu não dormia logo após cada leitura, era nisso que eu ficava pensando e observando minha mãe dormindo ao meu lado, como ela conseguia dormir? Certamente que já havia desvendado tal mistério!

Tenho a Coleção Joinha até hoje, capas remendadas, personagens repintados por mim e pela minha irmã, novas letras flutuando por cima das letras. Agora eu que leio tais aventuras às minhas filhas, e elas dormem, não durmo logo em seguida como a minha mãe, porque agora fico imaginando se ao dormirem, minhas meninas sonham com aquelas aventuras das quais também já participei e se em seus sonhos aparecem as mesmas dúvidas e curiosidades que eu tinha ou se elas sabiamente, como a minha mãe, também já desvendaram aquele antigo mistério. E eu não durmo pensando nisso.

Assim, a leitura e a literatura foram apresentadas a mim. Pelo menos é assim que eu me lembro... Eu tinha três ou quatro anos.

Muitos tempo depois, e esclareço aqui que a medida do tempo é para criança, muito tempo depois, já com cinco anos, lembro da minha avó, mãe da minha mãe, vovó Tontonha, pelo tempo que minha irmã e eu ficávamos em sua casa para que os meus pais pudessem trabalhar, entre bonecas de palha de milho, de sisal e de casca de melancia, entre banhos perfumados e comida gostosa, ela também lia para gente. Só que dessa vez, a leitura nunca era a mesma apesar do livro ser, e muitas vezes, as histórias nem vinham de livro algum, vinham da memória e da criatividade dela. E era tudo tão lindo! E eu achava minha avó a pessoa mais bonita e cheirosa e inteligente do mundo, ela sabia inventar, recontar de forma diferente a mesma história e representar! E novamente, muito tempo depois, já com a inteligência dos sete anos e a dor da perda da minha avó, descobri que ela mal sabia ler, riscava bem seu nome, com letrinhas bem bonitas e esforçadas, e era isso.

E muitos anos depois, diante do pelotão de livros na solidão da biblioteca, eu haveria de recordar aquela tarde remota que a minha própria solidão me inundou e me levou a conhecer os Cem Anos de Solidão. O mundo da literatura não era mais recente pra mim, mas muitas coisas ainda careciam de nomes e para mencioná-las eu precisava apontar com os dedos e os olhos. O encontro fatídico daquela tarde, me remontou há tempos imemoriais em que eu ainda era criança e já tinha despertado em mim o desejo de escrever sobre as águas, fluidas e vãs como se as palavras tivessem vida própria e pudessem me trazer ou me levar a algum lugar. Lugar de acolhimento na solidão, e as leituras passaram a ser solitárias, encontros de tormentos e tormentas de novas descobertas, e passei a fabricar tantos peixinhos dourados quanto Aureliano teria feito, e nesses passos de prestidigitação, uma nova cor encarnada sempre surgia em cada peixe, a minha vocação animal, o meu chamamento eram ouvidos... e como Remédios, a bela, fiquei vagando pelo deserto da solidão sempre acompanhada de mais solidão, “sem cruzes nas costas” amadurecendo nos meus sonos sem pesadelos, nos meus banhos intermináveis, nas minhas refeições sem horários, nos meus profundos e e prolongados silêncios sem lembranças, esperando sempre uma tarde de março em que eu pudesse ser levada entre lençóis, num redemoinho, num rebuliço de vento onde “nem os mais altos pássaros da memória” poderiam me alcançar... então voltei, voltei com um “rabinho de porco” e sabendo da condenação da minha estirpe, dos que lêem e amam ler, sabendo disso, fiz da condenação a minha vida, arrasada e arrastada pelos ventos irrefutáveis de quem não consegue se conter, transformei todos os livros em memórias, todas as memórias minha vida. E tudo o que permanece escrito e inscrito em mim, letras, imagens, vozes, pessoas são a literatura que me desenham todos os dias. Do amor e suas ânsias... a ânsia de compartilhar leituras e a necessidade de ouvir vozes que leem. E assim permaneço, até que a idade, o tempo e as memórias me envelheçam.

Mary Baleeiro. Aquarela Karol. fev.2019.15x21

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